domingo, 22 de julho de 2018

QUASE METADE DA JUVENTUDE NEGRA DE NITERÓI E SÃO GONÇALO ESTÁ DESEMPREGADA

Falta de oportunidade. O instrutor de elétrica e circense Edvan Miranda Santana e a estudante Gabriele Silva de Andrade - Foto: Fábio Guimarães / Agência O Globo


O Globo:

Um terço dos jovens de Niterói (32,7%) e São Gonçalo (34,7%) está desempregado e quase metade (46%) dos jovens autodeclarados pretos busca colocação profissional. Além disso, os negros (pretos e pardos) começam a trabalhar mais cedo e têm menor escolaridade. As conclusões são da pesquisa desenvolvida pela organização não governamental Bem TV, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) para entender a incidência do racismo sobre a empregabilidade da juventude nos dois municípios.

O estudo também constatou que os homens apresentam maior taxa de ocupação no mercado do que as mulheres (35,6% contra 31%, em Niterói; e 34,8% contra 30,6%, em São Gonçalo), representando a maior parte dos jovens empregados no setor público e na iniciativa privada. Outro resultado foi a aferição de que o racismo é maior em Niterói, enquanto a discriminação de gênero ocorre mais na cidade vizinha. Foram entrevistados mil jovens em cada município, com idades entre 15 e 29 anos, entre maio de 2017 e maio deste ano. A margem de erro da pesquisa é de três pontos percentuais para mais ou para menos, com taxa de confiança de 95%.

O questionário aplicado foi dividido em três partes para entender o perfil dos entrevistados e os desafios que têm de enfrentar na busca por uma vaga de trabalho: dados socioeconômicos, de inserção do jovem no mercado e da percepção do jovem sobre o racismo. Uma forma de aferição que revelou peculiaridades sobre como a sociedade enxerga a segregação racial.

Rubens Teixeira de Oliveira tem 23 anos e é estudante de Estatística. Ele ajudou na articulação da pesquisa e diz não ter se surpreendido com os dados.

— Outros estudos no Brasil e no mundo abordam a questão do racismo e da condição dos negros, por isso não me surpreendi com a disparidade. O Brasil é um dos países mais racistas do mundo e um lugar em que sempre houve a negação da problemática — avalia ele, que já trabalhou em telemarketing e como técnico químico. — A maioria das pessoas se preocupa em não parecer racista, mas esteriotipa o negro. A verdade é que boa parte das pessoas que entrevistam candidatos para vagas de emprego nunca parou para pensar no racismo de verdade.

RACISMO INSTITUCIONAL

Oliveira ainda chama a atenção para a dificuldade dos indivíduos de reconhecerem a discriminação dentro do racismo institucional. O conceito foi definido no Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), implementado no Brasil em 2005, como o conjunto de “normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações”.

— A maioria das pessoas ouvidas respondeu que acredita que exista o racismo, mas não se reconhece no papel de agressor ou de vítima dele. É uma questão que está atrelada ao mito da democracia racial. Naturaliza-se que nas favelas a maioria das pessoas seja negra e nos bairros nobres da cidade, brancas — argumenta Oliveira.

Márcia Correa e Castro, coordenadora da pesquisa, conta que a ideia de concorrer ao edital aberto pela União Europeia, que financiou o estudo, com a proposta de produzir dados que comprovassem a disparidade de oportunidades, veio depois da percepção do quão real é a discriminação.

— A Bem TV faz o encaminhamento de jovens para o mercado e tem um cadastro com mais de 1.600 pessoas. Em 2016, encaminhamos 941 candidatos e 142 acabaram empregados. Destes 142, 56% eram negros e 44%, brancos. Num primeiro momento você pode até olhar os números e dizer “empregamos mais negros”, mas o contexto não permite a comemoração. Isso porque dos 941 encaminhados, 713 eram negros. Percebemos que a empregabilidade dos brancos era muito maior — diz Márcia.

Ficou marcada na memória da pesquisadora um caso em que um candidato branco e outro negro foram concorrer a uma vaga. Embora o negro fosse muito mais bem preparado, quem acabou empregado foi o seu concorrente.

— Quando os encaminhamos, tínhamos noção de que um era muito melhor do que o outro. O candidato negro tinha experiência, sabia editar em vários softwares de vídeo, era articulado. O outro não tinha o mesmo nível de conhecimento e vivência. A única conclusão possível é que houve racismo — avalia a pesquisadora.

A preferência por candidatos brancos nunca é declarada abertamente pelos recrutadores, segundo Márcia, ficando sempre nas entrelinhas.

Para Gabriele Silva de Andrade, de 16 anos, a discriminação no mercado de trabalho foi menos sutil. Postulante a uma vaga de jovem aprendiz em um banco, ao entregar seu currículo à recrutadora já teve sua candidatura refutada de cara:

— Foi uma das piores experiências que eu tive na vida. A moça me olhou e disse, sem sequer olhar o meu currículo, que eu não tinha o perfil para atender o público. Falei que já tinha experiência como atendente, e ela respondeu que até poderia receber o meu currículo, mas que eu não seria chamada para a entrevista. Eu nem soube o que falar.

Edvan Miranda Santana, de 27 anos, é circense e eletrotécnico e percebe uma expulsão silenciosa dos negros de Niterói.

— Niterói é uma cidade embranquecida e que expulsa os negros pelo alto custo de vida. Já trabalhei em estaleiro, e é nítida a diferença de cargos entre brancos e negros. O negro é soldador, ocupa um cargo técnico, mas nunca é o gerente, mesmo quando tem a mesma formação do que um branco. Existe a ilusão de que o mercado funciona a partir do seu “gabarito”, mas ele funciona à base do networking. Quando que o negro tem a oportunidade de transitar nos mesmos lugares e com as mesmas pessoas que os brancos? — pergunta.

Para ele, o empresariado não se preocupa em promover a equidade de oportunidades.

— Quando botam o negro na publicidade é para se aproximar do público, mas fica só nisso.

Desempregado há dois anos, Wellington Barreto Bazílio, de 24, atualmente estuda para ingressar no curso de Design da UFF. Depois que foi dispensado de uma obra em que fazia instalação de esquadrias, passou a ter uma árdua rotina.

— Entreguei muito currículo, mas nada surgiu. Cansa sair cedo de casa, andar o dia todo no sol, bem vestido, e voltar sem resultados. As opções de trabalho para pessoas negras no mercado são limitadas — afirma.

A estudante alagoana Thays Ribeiro, de 25 anos, conta que uma recrutadora perguntou o motivo de ela não prender o cabelo, deixando-a sem reação.

— Já fui auxiliar de farmácia, vendedora, caixa, frentista e garçonete. Aqui no Rio já deixei vários currículos, mas não consigo emprego. A experiência em carteira não conta. Teve uma rua de Icaraí em que eu e um amigo fomos entregar currículo e não tivemos coragem de entrar porque todos os funcionários eram brancos. Nessa rua inteira, só tinha uma loja com funcionários pretos — relata.

Associação de Recursos Humanos diz que racismo ‘nunca é declarado’

Para o presidente da Associação Brasileira de Recursos Humanos do Estado do Rio (ABRH-RJ), Paulo Sardinha, garantir a igualdade de oportunidades é um dos grandes desafios do setor. Por isso, grandes indústrias e empresas adotam práticas avançadas de recursos humanos no recrutamento e seleção de pessoas de forma a promover a diversidade.

— As multinacionais costumam ter práticas avançadas para garantir a inclusão das minorias. Mas São Gonçalo e Niterói não têm grandes indústrias, não têm empresas tão bem estruturadas. Nessas áreas, os setores que empregam são o comércio e o de serviços, para o atendimento ao público. O baixo número de pessoas negras contratadas revela o racismo velado nas vagas para lidar com o público. Isso é um fato — argumenta.

Para garantir o ingresso de pessoas negras e também de mulheres e deficientes no mercado é fundamental que as empresas tenham a política clara de não discriminação.

— É importante que existam normas ou códigos escritos e trabalhados dentro das empresas que vetem o preconceito. Além disso, pode-se incentivar a preferência na contratação de empregados que pertençam a reconhecidas minorias, independentemente de cotas impostas por legislação — diz Sardinha, que reitera. — O racismo nunca é declarado.

Para pensar o tema, a ABRH-RJ promove nos dias 3 e 4 de outubro o Fórum da Diversidade, na sede da Firjan, no Centro do Rio, para discutir com profissionais o combate ao racismo e outras formas de discriminação:

— O índice de escolaridade é, infelizmente, uma barreira anterior ao recrutamento, e o da população negra é inferior ao da branca. Mas quando se tem oferta maior de negros, nada justifica que a empregabilidade de brancos seja muito mais elevada que o de negros. É uma relação direta quantitativa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário